A verdade é que algumas histórias não começam. Elas surgem. Bem assim, incomodadas, entre as linhas contínuas de uma frase torta. No escuro, no quadrante escondido de algum lugar. Se forma, como a poeira, de restos de coisas aleatórias, como células mortas, pedaços de cabelo. O que dá à história seu aspecto inexoravelmente orgânico.
Então. As histórias sem começo, como mencionadas, são essencialmente lacunares. Apresentam grandes vazios em suas formas, que podem ser evidentes ou não. Quanto mais evidente, menos significado. (Não quero entrar no mérito da questão. Isso não é um tratado metafísico. Pra ser sincera, pouco me importa o que faz das coisas vazias super-significantes, e seu esconderijo tão dotado de valor. Fico satisfeita com o pensamento de que elas tendem a ser mais grandiosas que as coisas normais. Uma coisa vazia é plena. Nós não somos plenos.).
O fato de surgirem não faz das histórias sem começo misteriosas. Muito pelo contrário. Se surgem, é porque parte delas estava vagando por aí, na frente dos nossos narizes durante muito tempo. Tempo suficiente para que se encontrassem, batessem um lero. Se conhecessem. Só assim essas partes podem se juntar, mesmo que não tenham muito em comum. Isso porque é certeza que mais tempo passa, e nesse badalar dos segundos outras partes surgem e se aliam. Assim se desenvolvem as grandes narrativas, de muitos pedaços suficientemente distantes para darem cabo a um enredo significativamente interessante. Ou perspicaz. Ou engenhoso. Enfim, a todo e qualquer tipo de enredo.
A grande diferença entre a história surgida e a história fabricada é o componente inumano. A história surgida permite o concurso de componentes alienígenas em seu corpo. E eles interagem, se articulam muito bem com as outras partes, criando elos de significado responsáveis pelo trunfo verdadeiramente criativo da história. A criatividade reside nesses elos inusitados.
De outra forma, quando a história é fabricada, a possibilidade de ligações entre seus componentes é muito limitada. Se algo acontece, é possível saber de onde vem, qual sua fonte verdadeira - mesmo que, às vezes, sejamos tapeados. Mas isso não vem ao caso.
Para maior compreensão do assunto, faz-se necessária uma exemplificação. Suponhamos. 1) Que haja uma princesa; 2) Que ela esteja em um castelo; 3) E que este castelo tenha um fosso; 4)E que este fosso seja suficientemente fundo para...; 5) abrigar crocodilos ferozes famintos e fedorentos...; 6)visíveis da torre em que essa princesa se encontra; 7)Que a torre seja alta suficiente para que; 8)...dragões possam guarda-la com seu hálito de fogo; 9)Que a princesa tenha sido corretamente educada em padrões rígidos de conduta; 10)Que esses padrões rígidos a façam encaixar-se perfeitamente no arquétipo de menininha indefesa e histérica; 11) Que esse arquétipo inclua uma fixação freudiana pelo pênis que garanta... 11.a)inveja do falo e conseqüente...; 11.b)dependência de um modelo masculino para formar-se completamente como mulher.
Neste exemplo podemos claramente perceber como a própria história não pode, de forma alguma, deixar de redundar nela mesma. O cenário circular em que a princesa se encontra chantagia a própria história a seguir apenas três caminhos. Ou 1)uma fábula dos irmãos Grimm com que as crianças devem identificar-se a fim de absorver preceitos morais ultrapassados; ou 2)ter um final pretensiosamente inusitado, o que acaba por tornar a história engraçadinha e frívola tanto como crítica ao modelo Grimmiano de fábula (que tem encantado o público infantil durante tanto tempo que pode ser considerado uma verdadeira ditadura da carochinha) quanto como negação dos valores que esse tipo de conto tradicionalmente passa; ou, ainda 3)tornar-se uma novela mexicana/filme da Julia Roberts.
Esse é só mais um de múltiplos exemplos que justificam como a literatura pode tornar-se algo estritamente comercial e pedante. Não é de se admirar que as crianças já tenham feito sua opção, repudiando essas fórmulas repetidas por pequenos bichos coloridos que só sabem dizer o próprio nome.
12/08/2004
10 comentários:
pica! pica! pica!
chuuuuuu!
isso foi escrito em 2004?
que fofa!
As inserções estavam lá desde o começo?
Cara, Quel, você é você tem tempo, né! =)
Realmente, muito legal.
eu tenho tempo, do verbo eu sou desocupada? bom, isso eu escrevi quando estava de greve na faculdade então... mas teoricamente eu faço isso da minha vida... não, você tem razão, do verbo "inútil".
as inserções das imagens? sim, sim. resolvi deixar, sou purista.
ah, e só pra constar: hoje eu desconfio dessa idéia de fórmula. aliás, esse é o meu projeto.
sim, 2004. pensei que muita coisa tinha mudado, que eu era outra pessoas, essas coisas. mas acho que só o blogue mudou de endereço. eu ainda estou no www.quel.com.br .
Hahaha
Eu quis dizer que você é você já faz muito tempo, há muito tempo: você é você tem tempo. Não te chamei de inútil desocupada. ;)
Ato falho? Hehehhe
nossa, total sou desocupada. ando vendo isso escrito nos muros. tipo bridget jones, saca?, quando ela vai sair com o mr. darcy, que ela vê o nome dela num daqueles troços eletrônicos. enfim... tá pichado mesmo, em algum muro, em algum lugar:
"vina: desocupada"
foi mal por atribui-lo a você. é, também ando achando que eu sou eu há muito tempo. muito estranho isso. tenho fé na mudança.
Vc é legal. Pode mudar tudo, menos isso, ok? =*
é só uma questão de ponto de vista: se vc continuar me achando legal. =)
olha, sinceridade. Enorme, não vou ler, mas gostei do gatinho. Chocrível.
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