segunda-feira, 22 de agosto de 2011

sobre fiordes

Terminei de ler, ou melhor, devorar o romance Cordilheira, do Daniel Galera.



O livro faz parte de um projeto chamado Amores Expressos. Projeto bastante controverso, aliás, por causa do uso de recursos públicos e da falta de critério de seleção dos projetos. Apesar de ser da Veja, a polêmica me parece bem resumida na seguinte reportagem, exageros e cinismo à parte: http://veja.abril.com.br/280307/p_113.shtml

Ainda está no ar o site oficial do projeto:http://www.amoresexpressos.com.br/

E o blogue que o Daniel Galera manteve durante a sua estadia em Buenos Aires, com generosíssimos 6 posts:http://blogdodanielgalera.blogspot.com/

Como brinde, um link com a crítica que o Reinaldo Azevedo faz sobre o projeto, demonstrando seus incrível repertório literário: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/avesso-do-avesso/amores-expressos-o-cinismo-com-mao-de-veludo-da-intelligentsia-brasileira/ .
"Talvez haja um Virgílio ou Horácio entre os viajantes, coisa de que duvido um pouco…", "Quais são os grandes escritores, dramaturgos ou artistas plásticos que marcaram o auge do poder soviético? Inexistem. A arte é uma atividade da vida privada, não do Estado.", etc etc...



Além da discussão do romance por esse lado, o público versus o privado, os limites da lei Rouanet, etc, ficou marcada na minha leitura de Cordilheira a ideia do romance feito por encomenda. Numa entrevista ao Jornal do Brasil, Bernardo Carvalho, autor do segundo volume do projeto, O filho da mãe, respondeu o seguinte:

"– Escrever sob encomenda, como neste caso, tem um peso, é algo construído a despeito de sua vontade. Mas gosto disso. Funciona como uma reportagem, pois serve como pretexto para entrar em contato com outros mundos e personagens, com os quais não teria contato se não fosse por essa via – diz. – A encomenda faz descobrir coisas em seu próprio universo literário. Sendo diferente, o livro reproduz tudo o que sempre quis. E o que sempre quis foi fazer literatura…”


(Tirei de um comentário de um leitor à resenha do Júlio Pimentel Pinto a O filho da mãe: http://paisagensdacritica.wordpress.com/2009/03/16/o-filho-da-mae-de-bernardo-carvalho/)

Sem querer criticar todos os romances sob encomenda do mundo (a Capela Sistina foi feita sob encomenda, afinal), será que a relação com a cidade, no livro do Galera, não é forçada? O que vocês acham?

Fiz um levantamento e descobri 10 erros de espanhol e 3 problemas linguísticos idiossincráticos (como o uso do "tú" por um argentino, algo altamente improvável), o que significa, pelo menos, que o autor não se deu ao trabalho de procurar as palavras estrangeiras no dicionário, e também, talvez ainda mais grave, que com todo o dinheiro disponibilizado para o projeto, a Companhia da Letras (que não é nenhuma editora pé de esquina) não achou importante contratar um revisor habilitado em espanhol. (Fico pensando como deve ter sido a revisão do russo, do chinês...). A viagem terá sido mesmo um apêndice? O projeto não leva a si mesmo a sério?

No mais, acho que tudo isso ainda não faz do livro uma obra ruim em si. Na verdade, gostei muito de lê-lo -- só para não desanimar ninguém. Ultimamente, ler um livro brasileiro escrito por um homem com uma protagonista feminina já parece um ponto positivo. Acho que com protagonista feminina em geral, Regina Delcastagnè me corrija, já que existe uma tradição bizarra de narradores masculinos mau-caráter -- herança maldita de Machado de Assis?

De forma geral, gostei muito da Anita van der Goltz Vianna, a narradora (fora o nome, talvez). No começo, ela parece uma personagem muito forte, decidida, o que não costuma a ser a opinião geral sobre as mulheres no mundo ficcional ou real. O fato de ela estar em crise com o ofício de ser escritora, de renegar seu livro como algo tão distante que ela já não lembra mais e de agir de forma absolutamente humana (folhear o próprio livro no avião para se lembrar, estranhar as diferenças culturais em uma cidade estrangeira, se atrapalhar nas relações com as pessoas, fazer as coisas sem saber por que) sem por isso ser ridícula, faz dela uma personagem mais do que verossímil. Uma personagem sólida, estável, interessante, diferente da tendência à tipificação, preferida por escritores da linha Fonseca, da qual o Galera, a princípio, parecia fazer parte.

Os personagens secundários é que são o problema. Eles são só interessantes no enredo pelo que fazem, não pelo que são. E aí resulta que eles não são muito. O Holden era um que tinha bastante potencial. Parecia se encaixar na fantasia de Anita a respeito de Buenos Aires:
"Os argentinos se reproduzem por osmose, garantiam meus amigos que já tinham passado pela excruciante experiência de tentar seduzir uma argentina. Volta e meia eu trazia essa teoria à mente apenas para tentar afugentar a imagem que me perseguiu durante todo o vôo para Buenos Aires, a de um homem meio narigudo, magro e atlético, com corte de cabelo estilo mullet, a barba por fazer, cheirando a cigarro, sussurrando seu belo casaco de lã imitado de alguma grife nova-iorquina para então montar em cima de mim e meter com força até esporrear o colo do meu útero e então desaparecer da minha vida" (p. 15)


E, é claro que, fora o sexo, a coisa não vai bem assim. Mas a relação de Holden e Anita, os laços emocionais ou não, íntimos ou não, começam a perder espaço, página a página, para uma história de teoria da conspiração que não é, para nada, interessante. O mesmo a respeito da relação da protagonista com o ex namorado, Danilo, figura importantíssima na vida dela por tê-la "adotado" depois que o pai morreu. Largar Danilo parece ter sido uma coisa fácil, mediante a negativa dele de ter filhos. Fico pensando que talvez corresponda àquele momento de liberdade que sentimos logo depois de nos distanciarmos de alguém com quem vivemos muito tempo. Mas e a solidão de uma cidade estranha? Galera esboça isso algumas vezes, nas conversas por telefone no locutorio, mas não desenvolve. Acho que a coisa fica superficial mesmo, porque o ponto fraco do escritor parece exatamente os diálogos. Não sei se de repente porque ele está num momento de transição de estilo -- pelo menos pelo que lembro, na sua fase mais Rubem Fonseca, ele tinha uma concisão irritante --, com uma influência clara de escritores de língua espanhola contemporâneos, cuja narrativa é segura e elaborada. Ele os coloca na mão inclusive de sua personagem (Roberto Bolaño, no caso, mas pensei também em um Villa-Matas, um Bellatín).

Acho que esse estilo em trasição também faz uma confusão com os registros. Na narração, alternam-se momentos mais "informais", em que a leitura é mais fluida: "Não trepar era sinônimo de estar feia..." (p. 19). E, no decorrer do romance, a norma volta com tudo, em frases que cultivam o prétérito mais que perfeito, a ênclise e demais recursos quase extintos do português. Algumas frases ficam bizarras:
"Foi a última da turma a brotar peitinhos e quadris, mas quando botou corpo se transformou num mulherão de curvas quintessenciais com um metro e setenta e sete de altura, cabelos loiros translúcidos como fios de náilon e um rosto delicado de nariz e queixo pequenininhos, uma potranca com rosto de francesinha" (p. 18)
que só poderia ter sido dita por um homem. E um homem pedante. Tudo bem, me lembro de quando as minhas amigas começaram a ter peito (quem teve primeiro, quem tinha mais, quem usava sutiã), mas quadril? Além disso, quem chama a amiga, no auge do culto às mulheres fruta, de "potranca"? Mas o que chama mesmo a atenção são as "curvas quintessenciais", expressão que denota desejo e também o mau hábito da escrita empolada.

Esse traço, a meu ver, põe a perder momentos decisivos, como o final do livro. A cena se passa entre os dois ex amantes, Danilo e Anita, depois de algum tempo de revival que precede a volta da protagonista ao Brasil. Desnecessariamente, conversam no terraço do prédio, num movimento romântico pouco verossímil, já que, sinceramente, poucas vezes em São Paulo o clima tornaria confortável um encontro num terraço. A conversa é altamente piegas, sobre uma palavra indígena que significa "o olhar que duas pessoas trocam quando cada uma fica esperando que a outra inicie uma coisa que as duas querem, mas que nenhuma tem coragem de começar" (p. 175). Primeiro, a afetação é algo alienígena no livro. Em nenhum momento, ou em poucos momentos, as personagens são arrebatadas pelo desejo de dizer, liricamente, o que estão sentindo. Segundo, a linguagem enciclopédica, que realmente não combina com o momento. A ideia é que Anita esteja sendo sincera, honesta, desabrida. Não faz sentido que o registro seja tão formal, o que a distancia do leitor, de Danilo e, mais importante, daquilo que ela está dizendo.

Acho que o que Galera ensaia neste livro é exatamente isso, a sinceridade. Sobre quem somos -- como geração mesmo --, o que pensamos e como vivemos. Sobre nossos sentimentos, apesar da pressão para que o escritor seja, exatamente, quintessencial, importante, sociólogo, algum tipo de autoridade legitimada sobre as coisas da vida. Contra tudo isso, Galera escreve com uma simplicidade impressionante, emocionante, envolvente e sincera. Acho que no que diz respeito ao estilo, ainda está tateando as melhores formas de fazê-lo, com resultados muitas vezes bastante positivos.

"...ali pelos vinte anos comecei a escrever um romance que era um pouco sobre mim, um pouco sobre minha mãe como eu a imaginava e outro tanto sobre ninguém em especial, apenas uma tentativa de afirmar que eu podia criar por conta própria o tipo de ficção que tinha um papel tão importante na minha vida, o tipo de ficção que havia encantado uma mãe e uma filha e criado um vínculo entre elas..." (p. 175)


PS: desculpem pelos links-sem-links, mas o blogger deu pau.

2 comentários:

Pedro Martins disse...

o Reinaldo é engraçado, ele mesmo traz exemplos para contradizer suas teses meio lunáticas. Não dá para tirar o Virgílio do grupo de escritores por encomenda. Talvez seja a Eneida a maior das propagandas de Estado travestida de arte.

E mesmo assim é maravilhosa.

beijo quel

vina apsara disse...

Pois é, mas tem um monte de escritores por encomenda que são otimos. Tipo o Maiakovski. Tipo Da Vinci.

Essa coisa de ser escritor profissional é mesmo estranha, sei la. Aqui no Brasil mais ainda.