quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

el post luminoso



Mario Levrero, uruguaio obscuro, conquistou o sonho de qualquer escritor: um culto secreto internacional de leitores histriônicos. Morto em 2004, aos 64 anos, tem uma obra esquisita que envolve quadrinhos, crítica, romances policiais e palavras cruzadas.

Seu livro "El discurso vacío" está para "La novela luminosa" (colosso de quase 600 páginas) como "Amuleto" está para "Los detectives salvajes", do Bolaño. Como eu adoro matemática, é tipo uma regra de três:

El discurso vacío - La novela luminosa
Amuleto - Los detectives salvajes

O que quer dizer que se a gente dividir a Novela pelos Detectives vai dar o mesmo resultado do Vacío pelo Amuleto. Não parece muito certo.

De qualquer forma, quer dizer que para entrar no culto-Levrero, o caminho é parecido ao do culto-Bolaño. Primeiro você começa com o romance curto que tem a ver com o catatau de 600 páginas que o segue. No processo, você se apaixona e dá gritinhos de emoção. Depois fica com a cara enfiada no catatau, sem conseguir explicar exatamente o que é que tem ali de tão... de tão... de tão...

Enfim.

O leitor deve entender o rito iniciático: as primeiras páginas do Discurso te apresentam uma espécie de auto-biografia cotidiana, em que o autor esforça-se por fazer exercícios diários para mudar sua caligrafia, numa tentativa frustrada de que isso afete a sua personalidade. Todos os dias, ele pega uma folha em branco, com sua caneta tinteiro, e tenta mudar a forma dos "S" e fazer os "A" mais claros. Durante esse processo árduo muito, mas muito importante, ele é interrompido pelo enteado, ou pelos construtores que trabalham na casa ao lado. Levrero, o personagem, um velho chato e carrancudo, escreve sobre o que acontece ao seu redor, tentando atentar à grafologia, mas sem muito sucesso. À noite, sua esposa revisa seu trabalho antes de os dois dormirem. Lentamente, este processo estapafúrdio se torna uma auto-biografia ficcional divertidíssima, em tudo o que ela tem de gratuita e irônica.

Neste momento, caro leitor, você terá sido enfeitiçado.

O segundo passo é conseguir La novela luminosa. É realmente um feito. Os livros do Levrero estão publicados em editoriais internacionais, disponíveis em todas as bancas de jornal, tais como Eloísa Cartonera e a espanhola Mondadori. Boa sorte.

A Luminosa tem duas partes. Na primeira, chamada diário da bolsa, Levrero - o personagem - descreve o desenvolvimento da sua atividade referente à bolsa Guggeheim que havia recebido em 2000. Deveria terminar um projeto idealizado, na verdade, há muitos anos, e com o qual já não se identifica. O processo criativo de Levrero é simples: acordar por volta das 5 da tarde, reclamar do calor, reclamar do gato do vizinho, reclamar da burocracia do Uruguai, reclamar da ex mulher (a esposa do "Discurso" virou ex), reclamar de dor nas costas, reclamar do assento da cadeira, reclamar da falta de opções de comida no supermercado, reclamar do sistema elétrico do prédio, reclamar da filha, reclamar da planta que morreu, reclamar do último romance policial que leu e, finalmente, jogar "Golf" (aquele jogo de cartas para computador) até as 6 da manhã. Fascinante.

O importante, é claro, não é o enredo. É a forma como esse narrador exímio consegue prender o leitor falando sobre qualquer abobrinha, qualquer mesmo, com uma habilidade sobrenatural. Vejamos:

"No me interesan los autores que crean laboriosamente sus novelones de cuatrocientas páginas, en base a fichas y a una imaginación disciplinada; sólo transmiten una información vacía, triste, deprimente. Y mentirosa, bajo ese disfraz de naturalismo. Como el famoso Flaubert. Puaj." (p. 72)

O novelón de Levrero, com suas cuatrocientas páginas, tem altos e baixos. Momentos de grande euforia -- quando finalmente o ar condicionado é instalado, iei! -- e de uma languidez muito única. Um personagem que parece bobo, mas que se deixa revelar em suas esquisitices, suas manias de velho, as crises de pânico, os sonhos, as mulheres... Um personagem que parece auto-biográfico, mas cuja verdade não está exatamente no que do enredo coincide ou não com a realidade.

É também uma válvula de escape para VOCÊ que está procrastinando a SUA própria bolsa e escrevendo coisas que VOCÊ sabe que não têm NADA a ver com ela.

(Fiquei pensando se era certo terminar este post sem falar sobre a segunda parte. Eu não quero dizer nada sobre ela, exceto que se chama "La novela luminosa" e, teoricamente, é o tal do romance que ele deve entregar à Fundação Guggeheim. Não vou dizer mais nada. Supostamente.)

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