sexta-feira, 10 de novembro de 2006

os deuses vendem quando dão

6:30 da manhã. ônibus. Muito sono. Tento me segurar firme enquanto o ônibus balança, o motorista no ponto morto, sem ligar para o piiiiiii histérico do motor. Meu pensamento funciona em mono até as sete. Sono, muito sono. Ônibus.
E o frio que faz lá fora, na semana em que o governo declara horário de verão (e me rouba uma hora e me deixa com essa cara), não ajuda. E o calor que faz aqui, e a respiração úmida de todos não ajudam. E os buracos na rua, e as brecadas profundas, e as conversas agudas, isso também não ajuda. Não ajuda que todos estejam com a mesma cara que eu - eu, no meu segundo ônibus, eles, que dirá! - me faz pensar em morrer, porque dormir não parece mais suficiente.
E muito menos ajuda saber que a passagem do ônibus vai aumentar 20% esse mês, a passagem para o inferno letárgico, o balanço imbecil da sobrevivência, do trabalho que enobrece. 20%! Pelo aumento do combustível, senhora - me diz o cobrador. Ele não paga ônibus.
Meu braço dói. Chega uma hora em que o sangue do braço desce e a mão fica vermelha: é quando se deve trocar o braço - mais uma hora de viagem - e deixá-lo descansar. De repente, eu fico feliz por só ter que pegar um ônibus, mas desisto da felicidade quando passamos entre o show-room da BMW e o da Harley-Davidson. Observo atentamente as motos, porque o ônibus fica parado no sinal. A beleza existe. Várias buzinas se manifestam, não sei o que acontece, não me importa. Sono. 20%. Frio. Harley-Davidson.
Uma moça chamada Danielle - é o nome que está escrito na caneta . Danielle lê um texto enorme em inglês. Não parece se importar com a conversa furiosa dos japoneses do bando vizinho (eles podiam conversar em pé, enquando eu dormia sentada...) , nem com as brecadas do ônibus. Uma caneta vermelha nervosa circula as palavras. Ela conta quantas folhas faltam para acabar, quando finalmente cruzamos a ponte. Nem o cheiro do rio me acorda. Reveso o braço.
A moça colada em mim ouve uma música. Heavy Metal. Eu gosto, qual será a banda? Gostaria de perguntar, mas isso significaria romper o silêncio letárgico e acordar. Não. Quem sabe outra hora. Além disso, uma frase não sai da minha cabeça. Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Surge, lentamente, o primeiro pensamento do dia, que vai para a interpretação dessa frase. Deus, em sua infinita consciência, deseja, pois tem um plano. Um plano secreto e perfeito, um plano que envolve o mundo todo, você e eu e o ônibus e o universo, em um abraço de razão e lógica, que nos traz felicidade porque existimos. Ah, que bom, há um sentido! O homem, por sua vez, em sua existência onírica, inconscientemente prevê o plano perfeito. A mulher, ao seu lado, acorda a tempo suficiente para ver a obra que nasce, do sonho do homem. A obra e o ônibus.

Um comentário:

Anônimo disse...

Nada melhor que o ônibus matinal...