terça-feira, 20 de abril de 2010

aperitivo: sylvia molloy

falando nisso, li um livro excelente hoje, entre esperar no consultorio médico e me desvencilhar do tédio em sala de aula. chama-se "varia imaginación", de uma escritora argentina chamada Sylvia Molloy, que más bien é crítica literária. o livro inteiro é um presente que você vai dar a si mesmo depois de ler este post, e está um pouco mal representado nesse capítulo traduzido a seguir por mim.

(vale lembrar que o livro é uma autobiografia).

RUIN

Um homem morre e, em seu cofre, junto com algum dinheiro que deixa a sua amante, a mãe de seu filho, deixa todas as cartas que mandou a outra mulher, com quem manteve uma relação paralela. Desde já é a amante que abre a caixa. Ele lhe havia dito: Tudo o que está lá é seu.

Depois das reações de rigor (indignação, ódio, principalmente uma enorme pena, não tanto pela morte dele, mas pela sensação de desperdício) a mulher se pergunta o que fazer com as cartas. Podia devolver-las a outra mulher, mas seria revelar que estava a par do papel que a outra teve na vida do homem que amava, ou que havia amado alguma vez, e não queria colocar-se em uma posição que a diminuía. Também não tinha coragem de jogá-las fora, porque eram cartas dele, e porque não se jogam cartas fora, mesmo que sejam alheias (tinha feito isso com cartas de seu pai a sua mãe e agora se arrependia). E também, por que não? Porque pensava que algum dia, quando já não a importasse leria as cartas do começo ao fim, com calma, sem que a leitura ficasse intolerável. Tudo o que está lá é dela, ele mesmo disse. Fecha o cofre depois de pegar o dinheiro; fecha também o apartamento, deixando esses planos vagos para algum futuro que nunca acontece, porque vai com o filho morar na França. Por causa da cabala, não vende nem aluga o apartamento. Quem sabe um dia não tenho que voltar à Argentina e quero um teto.

Anos depois, com a mãe já morta, o filho volta à Argentina. Quase como um turista: fala espanhol mal, se sente mais confortável com o francês. Quer recuperar o apartamento que foi de seu pai, de quem a mãe também não lhe falava, e quando o fazia era com amargura. É como retroceder no tempo. O apartamento está tal e qual era há dez anos, a cama (lembro dessa cama) a meio fazer desde aquele então, as toalhas penduradas no banheiro, os panos de prato na cozinha, murchos como se tivessem acabado de secar a louça. Encontra um par de fotos de um homem que talvez seja e talvez não seja seu pai. Quer encontrar uma semelhança com ele; não consegue. Chama um chaveiro para abrir o cofre e encontra as cartas. Percebe, pelo tom, que são cartas de amor, algumas vulgares, outras sentimentais, a autora se dirige ao destinatário com um nome privado, talvez secreto, e assina também com um apelido: não entende a maioria das alusões. Deduz (ainda que a princípio não reconheça a letra) que são cartas de sua mãe a seu pai, deduz que se amavam muito. O fato o tranquiliza e se permite fazer uma imagem do pai. Vende o apartamento e volta com as cartas à França.

Eu poderia ser a mulher que encontrou as cartas; ou a que as escreveu. Mudei detalhes, inventei outros, adicionei um personagem. A ficção sempre melhora o presente.

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