terça-feira, 17 de abril de 2012

do que eu falo quando falo de dança indiana



O escritor japonês Haruki Murakami lançou um livro sobre corrida. Um livro inteiro, Do que eu falo quando falo de corrida. Pouca gente sabia, antes disso, que ele é um maratonista amador, que corre todo dia não-sei-quantos quilômetros e, como bom japonês, cultiva uma rotina regradíssima de metas para cada maratona. Dá até nervoso de ler, principalmente porque a gente imagina a vida de um escritor como os beatniks: ao léu, sem lenço em sem documento, e várias outras expressões criadas exatamente para se referir supostamente a gente como ele.

Beatniks no Sena, revista Times, 1963

A minha vida, na verdade, é um pouco parecida (com a do Murakami, não a dos beatniks). Taí uma coisa que as pessoas não sabem sobre gente que não trabalha 8 horas por dia no escritório: se você não tiver o menor senso de rotina e de disciplina, você não consegue trabalhar. E não adianta que bater o cartão não vai te demover dessa disciplina. Acontece de trabalhar de madrugada, nas "férias", viajando... Acontece de trabalhar desde a adolescência, lendo Clarice Lispector na véspera do Natal. Se você não tiver se dedicado desde sempre a isso, não vai ser um bom crítico literário. Ou vai, não sei.

Bom, e se o Murakami escreveu sobre ser um maratonista, eu, pobre mortal brasileira, posso escrever sobre a minha paixão por dança indiana.

(Esse foi um começo típico de crítica literária. Acho que a Fapesp tinha que me pagar um bônus.)

Madhavi Mudgal, diva do Odissi

O Kuchipudi, como qualquer outra das 9 danças clássicas indianas, é uma atividade de alto impacto, especialmente para os joelhos. A mais nova dessas danças clássicas tem seus 500 anos -- um bebê frente às danças templárias como o Odissi, que tem uns 3 milênios de existência -- ela existe, portanto, antes da fisioterapia. De forma que os indianos começaram a dançar desse jeito muito antes de que a ideia de que o alto impacto é nocivo se difundisse pelo mundo. Eles nunca ligaram, portanto, que a postura básica das danças clássicas fosse a morte lenta dos tendões.

O Kuchipudi, assim, não tem nada a ver com ciência e saúde, ou boa qualidade de vida. Tem a ver com devoção.

Radha e Raja Reddy, Kuchipudi

Não é raro que os bailarinos neófitos saiam de sua primeira aula com uma dor bizarra nos pés, entre um ossinho e outro do metacarpo, e nem se segurando no corrimão para não despencar da escada do metrô. Na verdade, aconteceu isso comigo, não sei porque neguinho encera os degraus. As bailarinas mais experientes vivem à base de ressonâncias, raios-x e tendinites raras na bacia. Na verdade, a "vida útil" de uma bailarina é por volta de 40 anos, depois disso, elas tendem a abandonar o virtuosismo do nirita, a dança abstrata, que é rápida, vigorosa e precisa, e começam a se dedicar cada vez mais à abhinaya, o lado teatral, que é lento, emocionante e subjetivo.

O que há de mais bonito nessas tradições talvez seja a dissolução do limite entre o teatro e a dança, sob a égide religiosa. Quer dizer, a dança pura, o nirita, precisa ser feita com o rasa, o "sentimento", da devoção: as bailarinas devem sempre reproduzir o êxtase religioso das antigas bailarinas templárias.

Bailarinas de Konark

Já a abhinaya, o teatro, a expressão, só pode ser bem executada depois que a bailarina já conhece as técnicas tanto dos adavus basicos como também as representações das mãos, os rastas.

Ratheesh Sundaram, Kathakali

E é claro que, como o katatê kid, a bailarina só pode criar depois de dominar todas essas normas. Mas é claro também que criar não é bem o objetivo. A gente convive com as nossas ideias todos os dias! O que é novo é participar de uma tradição milenar, com grandes expoentes, e esquecer um pouco de si mesmo. E eventualmente machucar o joelho, ou escorregar da escada do metrô. O melhor é ser uma bailarina amadora de Kuchipudi em São Paulo e não ter obrigação nenhuma de representar os deuses, mas representar mesmo assim...

Ensaio para a comemoração do Diwali, a festa das luzes, no espaço caldeirão
(foto de Lina Lopes)

Não sei ainda a relação entre Kuchipudi e escrever -- o Murakami tem lampejos de como a maratona inspira a escrita dele. Eu escrevi isso, pelo menos. E gosto de pintar os meus dedos com alta, a tinta vermelha que não escorre quando você sua.

Obs: não usem esse texto como referência. Não tenho a menor ideia se as palavras em sânscrito ou hindi estão bem escritas.

2 comentários:

Anônimo disse...

Acho que as nossas paixões sempre se linkam com as nossas outras atividades de alguma forma: seja inspirando, seja dando um novo ânimo, seja abrindo nossos olhares para novos ângulos.

E também, apesar do Murakami fazer a associação entre maratona e escrita, a verdade é que o livro fala muito de outras coisas da vida dele também, o assunto nunca fica muito preso, né! :)

Essa sua foto é uma graça, eu adoro pinturas no corpo!

Marina Ofugi
(que coisa, não consigo comentar com minha conta do google! sempre cai numa página pra eu fazer um blog!)

Anônimo disse...

É vc na última foto!!!
Tata Marques