sábado, 14 de junho de 2014

Planeta do Exílio



Traduzi um meio capítulo do Planeta do Exílio, da Ursula le Guin. Pouco conhecida aqui no Brasil, ela explora as grandes capacidades ficcionais do gênero ficção científica, para discutir raça, gênero, identidade, etc.

Neste livro, especialmente, a questão é a universalidade do sentimento de desterro.

Sem mais:

CAPÍTULO TRÊS: O verdadeiro nome do Sol

O que causava as marés nesta costa, a ida e vinda matinal de quinze a cinquenta pés de água? Nenhum dos Anciões da Cidade de Tevar conseguiria responder esta pergunta. Qualquer criança em Ladin conseguiria: a Lua causava as marés, a força da Lua…

E a Lua e a Terra davam voltas em torno de si mesmas, um círculo imponente que leva quatrocentos dias para se completar, uma fase da Lua. E juntos, o planeta duplo circulava em torno do Sol, uma dança solene no meio do nada. Sessenta fases durava a dança, dois mil e quatrocentos dias, uma vida, um ano. E o nome do centro e Sol – o nome do Sol era Eltanin: Gamma Draconis.

Antes de adentrar pelos ramos cinzas da floresta, Jakob Agat olhou para o sol afundando numa névoa acima da cordilheira ocidental e sua mente o chamou pelo seu nome verdadeiro, cujo sentido não era apenas o Sol, mas um Sol: uma estrela entre estrelas.

A voz de uma criança brincando despontou atrás dele nas ladeiras do monte Tevar, fazendo-o lembrar das caras de escárnio, os sussurros de deboche que escondiam o medo, os gritos pelas suas costas – “Tem um forageiro aqui! Vem olhar pra ele!”. Agat, sozinho entre as árvores, andou mais rápido, tentando evitar a humilhação. Ele tinha sido humilhado entre as tendas de Tevar e tinha sofrido também o isolamento. Tendo vivido toda a sua vida em uma pequena comunidade da sua própria espécie, sabendo todos os nomes, rostos e corações, era difícil para ele lidar com estranhos.

Especialmente, estranhos hostis de uma espécie diferente, em multidões, nos seu próprio território. Agora, o medo e a humilhação o alcançaram, então ele parou completamente por um momento. “Vou estar ferrado se voltar para lá! – ele pensou. Deixe que o velho tolo faça do seu próprio jeito e fique sentado, fumando e esperando para morrer na sua tenda fedorenta até os gaal chegarem. Bárbaros ignorantes, intolerantes, briguentos, de cara esfarelada e olhos amarelos, que morram todos queimados!”.

“Alterra?”

A garota o tinha seguido. Ela parou a uns metros dele, sua mão no tronco de uma árvore basuk. Olhos amarelos brilhavam com entusiasmo e zombaria no branco homogêneo de sua face. Agat ficou parado, impassível.

“Alterra?” ela repetiu, na sua voz doce e leve, olhando de lado.

“O que você quer?”.

Ela se afastou um pouco. “Eu sou a Rolery”, disse, “nas areias…”.

“Eu sei quem você é. Você sabe quem eu sou? Sou um homem falso, um forageiro. Se os seus conterrâneos a vissem comigo, eles me castrariam, ou te estuprariam num ritual – não sei qual das leis vocês seguem. 

Agora vá embora!”

“Meu povo não faz isso. Existe afinidade entre você e eu”, ela disse, seu tom teimoso, mas incerto.

Ele se virou para sair.

“A irmã da sua mãe morreu nas nossas tendas…”.

“Para a nossa vergonha”, disse ele e continuou andando. Ela não o seguiu.

Ele parou e olhou para trás, quando tomou o caminho à esquerda da ponte. Nada se mexia em toda a floresta agonizante, além de uma raizama atrasada entre as folhas mortas, arrastando-se com sua obstinação vegetal excruciante na direção sul, deixando uma leve trilha atrás de si.

O orgulho racial o impedia de sentir qualquer vergonha pelo modo como tratou a garota. De fato, ele sentia alívio e retorno da sua autoconfiança. Ele teria que se acostumar com os insultos dos hilfs e ignorar a intolerância deles. Eles não podiam evitar; era sua própria forma de renitência, era sua natureza. O chefe tinha mostrado, em sua própria cultura, verdadeira cortesia e paciência. Ele, Jakob Agat, deveria ser igualmente paciente e igualmente renitente. Pois, o destino do seu povo, a vida da humanidade deste mundo, dependia do que aquelas tribos hilfs fariam ou não nos próximos trinta anos. Antes do nascer da lua crescente, a história de uma raça por seiscentas fases da lua, dez Anos, vinte gerações, a grande luta, a longa tentativa poderia acabar. A não ser que ele desse sorte, a não ser que ele tivesse paciência.

Grandes árvores secas, com galhos podres, permeavam estes montes, suas raízes murchas dentro da terra. Elas estavam prontas para cair com o empurrão do vento norte, para congelar embaixo do gelo e da neve por centenas de dias e noites, para apodrecer no descongelamento da primavera, para enriquecer, com sua vasta morte, a terra onde suas sementes, profundamente adormecidas, ficavam profundamente enterradas. Paciência, paciência…

Com o vento, ele veio pelas ruas brilhantes de Landin até a praça, passando pelas crianças que se exercitavam na arena da escola, ao entrar no edifício com arcadas que era chamado por um nome antigo: a Sede da Liga.

Como outros edifícios ao redor da praça, tinha sido construído há cinco anos, no tempo em que Landin era a capital de uma nação nova e forte, o tempo da força. Todo o primeiro andar era um salão espaçoso. Por suas paredes cinzas, havia desenhos delicados, que se destacavam em ouro. Na parede leste, um Sol estilizado rodeado por nove planetas ficava à frente do arranjo da parede oeste com sete planetas em longuíssima elipses em volta do seu Sol. O terceiro planeta de cada sistema era duplo e feito de cristal. Acima das portas do lado mais distante, mostradores com ponteiros ornamentados marcavam que hoje era o 391º dia da 45ª fase da lua do Décimo Dia Local da Colônia em Gamma Draconis III. Eles também mostravam que era o dia ducentésimo segundo do ano 1405 da Liga de Todos os Mundos, e que era o dia 12 de agosto em sua casa.

Muitas pessoas duvidavam que ainda existisse uma Liga de Todos os Mundos e alguns extremistas gostavam de questionar se realmente existiu um lar. Mas os relógios, aqui na Grande Assembleia e no subsolo da Sala de Registros, que estavam funcionando há seiscentos Anos da Liga, pareciam indicar, com sua origem e sua constância, que existiu uma Liga e que ainda existia um lar, um lugar de nascimento da raça do homem. Pacientemente, eles contavam as horas de um planeta perdido no abismo da escuridão e dos anos. Paciência, paciência…

Os outros alterranos estavam esperando por ele na biblioteca no andar de cima, ou chegaram logo depois, se reunindo em volta do fogo crepitante da lareira: dez deles juntos. Seiko e Alia Pasfal ligaram os jatos a gás e diminuíram a potência. Apesar de Agat não ter dito nada, seu amigo Huru Pilotson veio ficar ao seu lado na fogueira e disse “Não deixe eles te perturbarem, Jakob. São só uma horda de nômades estúpidos e teimosos , nunca vão aprender”.

“Eu estava enviando?”

“Não, claro que não” Huru riu. Ele era um cara ágil, magro e tímido, um amigo fiel de Jakob Agat. O fato de que ele era homossexual, e Agat não, era algo sabido pelos dois, por todo mundo ao redor deles, por todo mundo em Landin, de fato. Todo mundo em Landin sabia de tudo, e a honestidade, ainda que desgastante e difícil, era a única solução possível para este problema de excesso de comunicação.

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